quinta-feira, 3 de junho de 2010

Entrevista com Nomy Lamm

Há um tempo já, publicamos aqui no blog a tradução do texto It's a Big Fat Revolution escrito em 1995 pela de-quase-tudo-um pouco Nomy Lamm. No final do ano passado (2009) fizemos uma entrevista por e-mail com ela, para publicar na segunda edição do nosso zine impresso. Como não é todo mundo (ainda) que pode ter acesso a ele, colocamos aqui, na íntegra, as perguntas e respostas. Nomy é uma pessoa hiper atenciosa, admirável e foi muito legal manter este contato com ela. Segue a entrevista:

CAF: Antes de mais nada, muito obrigada por fazer esta entrevista com a gente. Queremos saber como e quando você acha que entrou em contato com o feminismo pela primeira vez e se sua música e sua arte acabaram sendo uma forma natural de juntar tanto suas ideias quanto seus sentimentos numa coisa só.
NOMY LAMM: A primeira coisa da qual me lembro é de falar sobre feminismo com um grupo de amigas quando eu era adolescente. Minhas amigas e eu fazíamos festas do pijama durante todo o ensino médio, por mais que seja algo que geralmente as garotas mais novas façam. Nós assistíamos a filmes, comíamos besteira, contávamos nossos segredos umas para as outras, falávamos sobre o que estávamos aprendendo e sobre o que estávamos pensando, sobre nossos corpos e sexo e amor e o mundo... quando o tema "feminismo" apareceu nós todas dissemos que não nos identificávamos com ele, eu acho que pensamos que isto significava que mulheres não deviam usar maquiagem e deveriam tentar ser poderosas executivas de sucesso. Por volta dos meus 16 anos eu estava numa banda só de meninas e quando eu tinha 17 eu me identifiquei como uma riot grrrl e passei a admitir a minha raiva. Eu sentia como se houvesse uma mágica que acontecesse entre meninas quando nós confiávamos umas nas outras, e eu me sentia protetora disso. Eu comecei a dedicar a minha vida a escrever e trocar zines com outras garotas, fazer música com elas, travestir-nos e outras formas de performance em espaços onde as garotas estavam no comando...

CAF: Você escreveu "It's a Big Fat Revolution" dizendo que muito do seu trabalho com o feminismo e a cena punk. Como você vê a conexão entre ambos?
NL: Na época em que escrevi este ensaio eu estava no meio de um movimento cultural de garotas na cena punk (riot grrrl). Havia uma massa crítica de meninas que estavam animadas em fazer as coisas, em serem ativas e o centro de nossos próprios mundos, e estávamos cansadas de estar no fundo de uma cena dominada por garotos. Nós concentramos o espírito rebelde do punk rock no feminismo, e as críticas radicais do feminismo no punk rock.

CAF: Geralmente o punk se constrói dentro de uma contra-cultura, sem sair muito de seu meio. Como você se sente tendo o seu trabalho reconhecido fora dessa cena (e agora sendo lido em outras línguas)?
NL: Fico feliz que meu trabalho, especialmente este ensaio ("It's a Big Fat Revolution") e os zines que eu escrevi ("I'm So Fucking Beautiful") tenha atingido a tantas pessoas. É muito legal que depois de tantos anos eu ainda ouça de pessoas que acabaram de se deparar com coisas que escrevi quando era uma adolescente e que tiraram algo disso. O trabalho de libertação gorda com o qual eu comecei a me envolver quando eu tinha 17 anos tem um alcance amplo, é aplicável ao punk mas também pra qualquer um que tenha aprendido a gordofobia de sua cultura. A própria "Guerra contra a obesidade" que vem acontecendo nos EUA está criando um ambiente onde nossos corpos não são consideradas como a "causa" da doença, eles estão sendo considerados como "a doença". Então eu fico feliz que a minha voz possa ainda fazer parte do combate a estas mensagens, aqui nos Estados Unidos e fora dele.


CAF: Também em seu texto você disse que há uma revolução acontecendo, mas nada que fosse aparente para a cultura mainstream ainda. Isso foi em 1995. Agora estamos em 2009... muita coisa mudou?
NL: Essa é realmente uma boa pergunta. Eu acho que muita coisa mudou de certa forma, há um movimento de libertação gorda muito maior que está enxergando as políticas da gordura dentro de um sistema de opressão mais amplo. Muitos dos ideais pelos quais eu estive lutando quando era adolescente acabaram se tornando parte da minha realidade diária de uma forma que eu não poderia ter adivinhado. É revolucionário para mim que eu possa viver num contexto queer, feminista, sexo-positivo, positivo em relação ao corpo, transgressor de gênero, politicamente radical e anti-racista em que estes são os valores pressupostos, e meu trabalho é sobre aprofundar em vez de lutar o tempo todo contra um inimigo visível. Por outro lado, a visão que eu tinha de uma transformação de todos os sistemas de autoridade e de opressão institucionalizada em uma realidade centrada em comunidade e amor ao corpo e à terra, bem, isso não aconteceu realmente. Digo, os Estados Unidos é uma merda politicamente e economicamente, tão interligado com esses velhos sistemas de poder que eu não tenho certeza se realmente temos a capacidade de mudar. Eu frequentemente me sinto derrotada. Minha namorada Melodie disse outro dia que ela acha que essa sensação de derrota está conectada com o processo de se livrar da identificação com o poder. Tipo quando eu era mais jovem e acreditava no sistema em que vivia porque eu acreditava que ele poderia ser transformado, e na medida em que eu envelheço, mais desiludida eu fico em aceitar que eu sou uma serva. Eu gostaria de ter essa crença confrontada, quero acreditar que podemos mudar o mundo, que nossos esforços não tem de ser mediados por um sistema de poder que quer cooptar nosso trabalho.

CAF: Você acha que essa gordofobia toda está relacionada apenas aos padrões de beleza/questão de "saúde"? O que você acha que se esconde por trás disso?
NL: Acho que os padrões de beleza e as questões de saúde meio que surgiram de uma tendência cultural focada em padronizar nossas vidas, alimentação, roupas, corpos (locais de trabalho, moradia, etc etc) ao longo dos últimos séculos com a Revolução Industrial. E eu acho que a pessoa gorda acaba se tornando um bode expiatório conveniente.

CAF: Houve alguma situação específica de opressão que você gostaria de compartilhar que a fez perceber que as coisas não estavam certas, ou foi como um bocado de experiências acumuladas?
NL: Eu fiz dieta por tanto tempo, desde os meus cinco anos de idade, e cresci num ambiente familiar com um pai bulímico, e experimentei traumas médicos e sexuais quando jovem, que a partir do momento em que tive espaço para falar a respeito disso tudo, as coisas simplesmente deram um clique dentro de mim. Foi um alívio e tanto poder ver um sistema que estava criando essas experiências em vez de achar que havia algo de errado comigo ou que eu merecia isso tudo.

CAF: Você disse que o fato de ter nascido com uma perna não influenciou tanto a sua imagem corporal tanto quanto ser gorda o fez. Você acredita que isso pode ter sido influenciado de certa forma por uma sociedade que tende a ter pena de pessoas com alguma deficiência física e satanizar/culpar as pessoas gordas?
NL: Eu acho que é uma boa possibilidade. Era assim que eu me sentia na época em que escrevi esse ensaio [It's a Big Fat Revolution], mas eu não lidei de fato com o meu trauma de ter perdido meu pé ou de usar uma prótese que teve um preço alto no meu corpo. Eu sabia que a minha deficiência não era minha culpa, enquanto que eu sempre era levada a crer que ser gorda era fruto da minha própria fraqueza. Quando eu me acertei com a minha gordura, minha sexualidade [queerness], meu gênero, eu tive que lidar com a experiência física de meu corpo que de várias maneiras havia sido moldado pela minha deficiência. Meu corpo foi problematizado no meu nascimento e meu pé foi amputado por motivos basicamente não-médicos, então eu acredito que esta tenha sido uma razão determinante para que a opressão que eu experimentei em relação ao meu corpo tenha me marcado tão profundamente.

CAF: Ainda sobre influência, você chegou a crescer em um ambiente religioso? Houve algum conflito entre você ser judia e lésbica, e como isso pode ter afetado sua música e visão política?
NL: Eu cresci numa congregação que não teve um rabino até que eu completasse treze anos, e que depois se afiliou como reconstrucionista, que é uma ramificação conhecida por ser mais progressiva socialmente. Eu acho que foi difícil pra mim ter que me assumir em Olympia onde cresci porque minha família e todas as mesmas pessoas que já me conheciam desde que eu era uma criança ainda tinham as suas atenções voltadas para mim, mas eu não recebi muitas mensagens religiosas homofóbicas por parte dessa comunidade. Eu investi muita energia para integrar minha sexualidade [queerness] e o judaísmo e deficiência física e feminismo etc, entendendo o que eu acreditava e como tudo pode se complementar. Ser judia teve um grande impacto na minha sensibilidade musical.

CAF: Você está envolvida em algum projeto musical ultimamente? E não musical?
NL: Nomy Lamm & THE WHOLE WIDE WORLD. É basicamente uma plataforma para colaborar com um monte de pessoas diferentes e fazer com que tudo tome parte de um projeto coeso. Tenho trabalhado com um pedal loop e apresentação de slides de fotos, usando música pré-gravada criada por mim junto de outrxs artistas, e cantando e fazendo looping ao vivo no palco. Eu só tenho gravações caseiras por ora, espero gravar um novo álbum no próximo ano ou algo assim. Eu também toquei algumas músicas recentemente com um projeto de banda chamado OBEAST, e foi muito legal. Além disso eu estou fazendo pós-graduação trabalhando num mestrado sobre escrita criativa, e eu acabei de escrever uma peça curta chamada "Embroiled" que será produzida na temporada pela Jump! (uma companhia de teatro que produz trabalhos que mostram representações autênticas de doenças mentais).

CAF: Por último mas não menos importante, há algo que você gostaria de adicionar/dizer/reclamar? :-)
NL: Minhas costas dóem bastante agora, e eu tenho que me vestir e ir ao dentista. Acho que é toda a reclamação que tenho para fazer no momento. Muito obrigada por me entrevistar, estou animada em fazer parte do zine! Um alô para as feministas brasileiras, é uma honra me envolver com vocês.

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Nomy Lamm ao vivo, @ the Big Gay Cabaret


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